Walter Pinto
A pesca no estado do Pará está derrubando um antigo mito: o de ser uma atividade exclusivamente masculina. Segundo dados da Federação dos Pescadores - Fepa, as mulheres representam, hoje, cerca de 10% do total de 120 mil pescadores artesanais em atividade no Estado.
Trabalhando, principalmente, na captura de mariscos, no beneficiamento de produtos e na confecção e reparo de apetrechos de pesca, as mulheres, aos poucos, estão se impondo num setor que guarda uma cultura de preconceitos em relação a elas. Vencer as barreiras não tem sido tarefa fácil, principalmente porque somente agora, elas próprias estão se reconhecendo como pescadoras.
Essa é também a história das mulheres pescadoras da Baía do Sol, localidade na costa oriental da Ilha de Mosqueiro, balneário distante 82 km de Belém do Pará por via rodoviária. Há quase uma década, a socióloga Josinete Pereira Lima acompanha a evolução da luta daquelas mulheres em defesa de seus direitos. Em 1995, com uma bolsa de iniciação científica, ela travou o primeiro contato com a comunidade, ainda na época da graduação. Em fevereiro de 2004, o resultado de suas pesquisas virou tese de mestrado. Neste meio tempo, as coisas estão mudando na Baía do Sol.
Com o título "Pescadoras e donas de casa: a invisibilidade do trabalho das mulheres numa comunidade pesqueira - o caso da Baía do Sol", a tese de Josinete, defendida em fevereiro passado, revelou um cotidiano feminino dividido entre os afazeres do lar, o trabalho na roça e as atividades da pesca. Também registrou o processo de conscientização daquelas mulheres sobre a pesca enquanto profissão, resultando na organização da Associação das Mulheres Pescadoras e na filiação delas à Colônia de Pescadores Z-9.
Desenvolvendo uma das profissões mais antigas do mundo, o trabalhador da pesca, no Brasil, somente passou a ter direitos a benefícios previdenciários com a promulgação da Constituição de 1988. Em regime de assegurado especial, o pescador tem direito à aposentadoria, seguro por acidente, pensão por morte, auxílio-doença e auxílio-reclusão. Para pleitear esses benefícios, precisa estar filiado a uma colônia de pescadores, que cumpre papel semelhante ao de sindicato.
Quando iniciou seu estudo, Josinete percebeu que dentro das políticas públicas oficiais não havia espaço para a mulher pescadora, reforçando a idéia da pesca como atividade eminentemente masculina. Na Baía do Sol, havia não mais que cinco pescadoras filiadas à colônia Z-9, em 1995.
Após essa constatação, a pesquisadora quase chegou a desistir do tema. No entanto, observando que os pescadores da localidade possuíam esposas e filhos, decidiu redirecionar o objeto de seus estudos para suas famílias. Procedeu, então, consulta aos formulários de um levantamento realizado pela professora Luzia Miranda Álvares, sobre as famílias daquela comunidade. Após a identificação das mulheres, a pesquisadora partiu para o trabalho de campo.
Josinete observou que, no relatar de seu dia-a-dia, nenhuma mulher de pescador se assumia como pescadora. Contaram que acordavam às 5 horas da manhã, preparavam o café, arrumavam os filhos para a escola, limpavam a casa, providenciavam o almoço e, dependendo da maré, saíam à pesca, que consistia em colocar matapi na enchente do igarapé, retornando, na vazante, para recolher o resultado, que ia para mesa da família. É o que se chama despescar. Outra atividade que as mulheres da Baía do Sol realizam costumeiramente é a tapagem do igarapé para a pesca do camarão. Estendem uma rede transversal no igarapé, segura pelas extremidades, e procedem à varredura. "Na verdade, elas desenvolviam um trabalho de pesca, mas não se consideravam pescadoras porque faziam aquilo como uma extensão dos afazeres domésticos, como uma atividade da casa", explica a pesquisadora.
O desenvolvimento dos estudos aproximou Josinete dessas mulheres. Seu trabalho contribuiu para lhes abrir o horizonte, principalmente quanto à necessidade de organização em busca dos direitos concedidos aos homens. O primeiro passo foi o despertar das consciências para a atividade que exerciam. "Nosso papel foi dar palestras, realizar seminários, falar dos direitos previdenciários, lhes explicar o sentido do 8 de março, Dia Internacional da Mulher", conta.
Em 1997, 13 mulheres, esposas de pescadores e igualmente envolvidas coma atividade pesqueira, criaram a Associação de Mulheres Pescadoras da Baía do Sol, atualmente com cerca de 130 associadas. Não por caso, a fundação ocorreu no dia 8 de março. "A partir daí, elas começaram a se inserir na Colônia de Pescadores. Sempre colocamos que a associação era importante para a organização delas, mas que deveriam estar filiadas à colônia, porque é esta que lhes fornece os documentos exigidos para obtenção dos direitos previdenciários", relata a pesquisadora.
A relação das mulheres pescadoras com o posto de benefício do Instituto Nacional de Seguridade Social - INSS é marcada pelo desencontro de informação e preconceitos. No preenchimento da ficha de solicitação de benefício, as mulheres costumam responder naturalmente que são domésticas e acabavam sendo excluídas.
Diante da quantidade desse tipo de casos, um ex-presidente da colônia foi ao gerente do posto do INSS, em Mosqueiro, e reclamou: "o seu pessoal não conhece a realidade do meu povo, não sabe o que é a pesca. Quando a pescadora chega aqui e vocês perguntam qual a ocupação dela, ela não está mentindo quando diz que é dona de casa. Mas ela é muito mais que isso. É dona de casa, é pescadora e é agricultora. Dependendo do horário, ela faz alguma coisa".
Essa multiplicidade de atividades, por outro lado, concorre para mais um tipo de entrave burocrático, a dupla filiação à colônia e ao sindicato rural. Nos pedidos de aposentadoria, o INSS cruza os dados e descobre a duplicidade, que impede a concessão imediata do benefício.
Há também questões ligadas ao preconceito do qual é vítima a operária da pesca. Uma dessas questões é o estereótipo da pescadora. A idéia que se faz da pescadora é da mulher simples e sem vaidade. Mas quando vão à cidade, elas gostam de se arrumar, fazer as unhas, passar batom, enfim, são mulheres e vaidosas também. Em Abaetetuba, uma pescadora contou à pesquisadora que ao chegar ao INSS, a funcionária olhou-a espantada, chegando a duvidar que fosse mesmo pescadora. "Como se, por ser pescadora, eu tivesse que andar suja, rasgada, com a roupa da pescaria", contou-lhe.
Crenças se originam no mito da masculinidade da pesca
É na infância que ocorre o primeiro contato de homens e mulheres com as atividades pesqueiras. Em geral, é o pai que ensina o filho a tecer uma rede. Ou quem lhe dá uma linha de pesca para se distrair enquanto concerta a embarcação na beira da praia. Não se trata de exploração do trabalho infantil, como, à primeira vista, possa parecer. Nesta fase, a pesca não passa de um passatempo.
As crianças vão à escola, mas poucas levam os estudos até o final. O nível de abandono é alto. "A escola está muito distanciada da realidade dos estudantes. Na juventude, muitos abandonam a sala de aula porque não conseguem ver relação das matérias com o mundo em que vivem", afirma Josinete Pereira.
Os rapazes, em geral, seguem a profissão dos pais, tornam-se pescadores. As mulheres se ocupam das tarefas do lar, incorporando atividades da roça e da pesca. Ser mulher numa comunidade pesqueira é enfrentar alguns preconceitos que estão arraigados na cultura do povo. Não pode, por exemplo, tocar numa rede de pesca que pode trazer azar ao pescador.
Quando estão menstruadas, elas são tidas como panema, pessoa infeliz na caça ou na pesca, segundo define o dicionário Aurélio. Todos os preconceitos se originam do mito de que a pesca é uma atividade masculina. "As próprias mulheres acreditam muito nessas crenças. Perguntadas porque elas não pescam quando estão menstruadas, dizem que é porque isso atrai o boto, que fica rodeando o barco, algumas vezes chegando a alagá-lo. São coisas que estão incorporadas na cultura da comunidade pesqueira em todo o Estado do Pará", afirma a mestra em sociologia.
A pesca no estado do Pará está derrubando um antigo mito: o de ser uma atividade exclusivamente masculina. Segundo dados da Federação dos Pescadores - Fepa, as mulheres representam, hoje, cerca de 10% do total de 120 mil pescadores artesanais em atividade no Estado.
Trabalhando, principalmente, na captura de mariscos, no beneficiamento de produtos e na confecção e reparo de apetrechos de pesca, as mulheres, aos poucos, estão se impondo num setor que guarda uma cultura de preconceitos em relação a elas. Vencer as barreiras não tem sido tarefa fácil, principalmente porque somente agora, elas próprias estão se reconhecendo como pescadoras.
Essa é também a história das mulheres pescadoras da Baía do Sol, localidade na costa oriental da Ilha de Mosqueiro, balneário distante 82 km de Belém do Pará por via rodoviária. Há quase uma década, a socióloga Josinete Pereira Lima acompanha a evolução da luta daquelas mulheres em defesa de seus direitos. Em 1995, com uma bolsa de iniciação científica, ela travou o primeiro contato com a comunidade, ainda na época da graduação. Em fevereiro de 2004, o resultado de suas pesquisas virou tese de mestrado. Neste meio tempo, as coisas estão mudando na Baía do Sol.
Com o título "Pescadoras e donas de casa: a invisibilidade do trabalho das mulheres numa comunidade pesqueira - o caso da Baía do Sol", a tese de Josinete, defendida em fevereiro passado, revelou um cotidiano feminino dividido entre os afazeres do lar, o trabalho na roça e as atividades da pesca. Também registrou o processo de conscientização daquelas mulheres sobre a pesca enquanto profissão, resultando na organização da Associação das Mulheres Pescadoras e na filiação delas à Colônia de Pescadores Z-9.
Desenvolvendo uma das profissões mais antigas do mundo, o trabalhador da pesca, no Brasil, somente passou a ter direitos a benefícios previdenciários com a promulgação da Constituição de 1988. Em regime de assegurado especial, o pescador tem direito à aposentadoria, seguro por acidente, pensão por morte, auxílio-doença e auxílio-reclusão. Para pleitear esses benefícios, precisa estar filiado a uma colônia de pescadores, que cumpre papel semelhante ao de sindicato.
Quando iniciou seu estudo, Josinete percebeu que dentro das políticas públicas oficiais não havia espaço para a mulher pescadora, reforçando a idéia da pesca como atividade eminentemente masculina. Na Baía do Sol, havia não mais que cinco pescadoras filiadas à colônia Z-9, em 1995.
Após essa constatação, a pesquisadora quase chegou a desistir do tema. No entanto, observando que os pescadores da localidade possuíam esposas e filhos, decidiu redirecionar o objeto de seus estudos para suas famílias. Procedeu, então, consulta aos formulários de um levantamento realizado pela professora Luzia Miranda Álvares, sobre as famílias daquela comunidade. Após a identificação das mulheres, a pesquisadora partiu para o trabalho de campo.
Josinete observou que, no relatar de seu dia-a-dia, nenhuma mulher de pescador se assumia como pescadora. Contaram que acordavam às 5 horas da manhã, preparavam o café, arrumavam os filhos para a escola, limpavam a casa, providenciavam o almoço e, dependendo da maré, saíam à pesca, que consistia em colocar matapi na enchente do igarapé, retornando, na vazante, para recolher o resultado, que ia para mesa da família. É o que se chama despescar. Outra atividade que as mulheres da Baía do Sol realizam costumeiramente é a tapagem do igarapé para a pesca do camarão. Estendem uma rede transversal no igarapé, segura pelas extremidades, e procedem à varredura. "Na verdade, elas desenvolviam um trabalho de pesca, mas não se consideravam pescadoras porque faziam aquilo como uma extensão dos afazeres domésticos, como uma atividade da casa", explica a pesquisadora.
O desenvolvimento dos estudos aproximou Josinete dessas mulheres. Seu trabalho contribuiu para lhes abrir o horizonte, principalmente quanto à necessidade de organização em busca dos direitos concedidos aos homens. O primeiro passo foi o despertar das consciências para a atividade que exerciam. "Nosso papel foi dar palestras, realizar seminários, falar dos direitos previdenciários, lhes explicar o sentido do 8 de março, Dia Internacional da Mulher", conta.
Em 1997, 13 mulheres, esposas de pescadores e igualmente envolvidas coma atividade pesqueira, criaram a Associação de Mulheres Pescadoras da Baía do Sol, atualmente com cerca de 130 associadas. Não por caso, a fundação ocorreu no dia 8 de março. "A partir daí, elas começaram a se inserir na Colônia de Pescadores. Sempre colocamos que a associação era importante para a organização delas, mas que deveriam estar filiadas à colônia, porque é esta que lhes fornece os documentos exigidos para obtenção dos direitos previdenciários", relata a pesquisadora.
A relação das mulheres pescadoras com o posto de benefício do Instituto Nacional de Seguridade Social - INSS é marcada pelo desencontro de informação e preconceitos. No preenchimento da ficha de solicitação de benefício, as mulheres costumam responder naturalmente que são domésticas e acabavam sendo excluídas.
Diante da quantidade desse tipo de casos, um ex-presidente da colônia foi ao gerente do posto do INSS, em Mosqueiro, e reclamou: "o seu pessoal não conhece a realidade do meu povo, não sabe o que é a pesca. Quando a pescadora chega aqui e vocês perguntam qual a ocupação dela, ela não está mentindo quando diz que é dona de casa. Mas ela é muito mais que isso. É dona de casa, é pescadora e é agricultora. Dependendo do horário, ela faz alguma coisa".
Essa multiplicidade de atividades, por outro lado, concorre para mais um tipo de entrave burocrático, a dupla filiação à colônia e ao sindicato rural. Nos pedidos de aposentadoria, o INSS cruza os dados e descobre a duplicidade, que impede a concessão imediata do benefício.
Há também questões ligadas ao preconceito do qual é vítima a operária da pesca. Uma dessas questões é o estereótipo da pescadora. A idéia que se faz da pescadora é da mulher simples e sem vaidade. Mas quando vão à cidade, elas gostam de se arrumar, fazer as unhas, passar batom, enfim, são mulheres e vaidosas também. Em Abaetetuba, uma pescadora contou à pesquisadora que ao chegar ao INSS, a funcionária olhou-a espantada, chegando a duvidar que fosse mesmo pescadora. "Como se, por ser pescadora, eu tivesse que andar suja, rasgada, com a roupa da pescaria", contou-lhe.
Crenças se originam no mito da masculinidade da pesca
É na infância que ocorre o primeiro contato de homens e mulheres com as atividades pesqueiras. Em geral, é o pai que ensina o filho a tecer uma rede. Ou quem lhe dá uma linha de pesca para se distrair enquanto concerta a embarcação na beira da praia. Não se trata de exploração do trabalho infantil, como, à primeira vista, possa parecer. Nesta fase, a pesca não passa de um passatempo.
As crianças vão à escola, mas poucas levam os estudos até o final. O nível de abandono é alto. "A escola está muito distanciada da realidade dos estudantes. Na juventude, muitos abandonam a sala de aula porque não conseguem ver relação das matérias com o mundo em que vivem", afirma Josinete Pereira.
Os rapazes, em geral, seguem a profissão dos pais, tornam-se pescadores. As mulheres se ocupam das tarefas do lar, incorporando atividades da roça e da pesca. Ser mulher numa comunidade pesqueira é enfrentar alguns preconceitos que estão arraigados na cultura do povo. Não pode, por exemplo, tocar numa rede de pesca que pode trazer azar ao pescador.
Quando estão menstruadas, elas são tidas como panema, pessoa infeliz na caça ou na pesca, segundo define o dicionário Aurélio. Todos os preconceitos se originam do mito de que a pesca é uma atividade masculina. "As próprias mulheres acreditam muito nessas crenças. Perguntadas porque elas não pescam quando estão menstruadas, dizem que é porque isso atrai o boto, que fica rodeando o barco, algumas vezes chegando a alagá-lo. São coisas que estão incorporadas na cultura da comunidade pesqueira em todo o Estado do Pará", afirma a mestra em sociologia.
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